“Nada do que fiz/ por mais feliz/ está à altura do que há por fazer”, canta Gal Costa em “Sem Medo Nem Esperança”, canção que abre Estratosférica (2015), o mais recente álbum de estúdio da cantora baiana. O registro, que dá continuidade ao movimento de renovação sonora da artista, iniciado com Recanto (2011), é uma espécie de celebração de todas as fases pelas quais Gal Costa passeou ao longo dos 50 anos de carreira, comemorados no ano passado. Estratosférica, eleito pela Rolling Stone Brasilum dos principais lançamentos nacionais de 2015, é um exemplo da Gal Costa que não tem receio de se aventurar pelo novo.
Quando Recanto chegou às lojas, muitos fãs tradicionalistas da intérprete torceram o nariz. Julgaram a obra demasiadamente moderna. Com o passar do tempo (e a digestão dos puristas), o disco se tornou um marco na carreira da cantora. “O desafio me move. Eu tenho muito mais prazer em buscar o risco do que me acomodar e continuar fazendo shows com canções consagradas”, ela afirma. “Gosto de romper paradigmas e fazer algo completamente oposto ao que as pessoas esperam de mim. A ideia tanto de Recanto quanto de Estratosférica, além de mostrar uma nova faceta da minha obra, foi me aproximar do público jovem que gosta do meu trabalho. Ficar na zona de conforto pode ser ótimo, mas não serve para mim. A sensação de fazer algo novo é comparável ao
barato que as drogas podem proporcionar.”
A renovação dos fãs, como Gal salienta, é um dos motivos pelos quais ela segue trabalhando. “Vivo o melhor momento da minha carreira aos 70 anos de idade e tenho certeza de que agora estou no auge. O reconhecimento do público é algo inexplicável e que me
enche de alegria. Essa alegria também reflete em minha vida pessoal.”
Há pouco menos de uma década, Gal Costa realizou um grande sonho: ser mãe. Adotou Gabriel, hoje com 10 anos, e descobriu os prazeres de “ser dona de casa”. Para ela, a ideia de moldar um caráter é o maior legado que um ser humano pode deixar. “A maternidade vem acompanhada da oportunidade de exercer o amor incondicional. É a oportunidade que uma pessoa, seja homem, seja mulher, tem de presentear o mundo com um ser humano melhor.” Talvez isso também se estenda à música. Um encontro recente com um fã, durante uma tarde de autógrafos em São Paulo, deu a Gal uma nova amostra do alcance de seu trabalho. “Ele me olhou nos olhos e disse: ‘Você moldou o meu ser’. Aquilo me tocou de uma forma muito profunda. É uma maneira de dar a minha contribuição na tentativa de construir uma sociedade melhor. O mundo está atravessando um momento muito complicado. Falta amor. Falta respeito pela vida e pela opinião do outro, mas eu acredito no poder agregador da música e no quanto ela pode mudar a energia das pessoas.”
A plenitude e a vitalidade exaladas por Gal estão ligadas ao fato de ela continuar produzindo discos que são relevantes. “É cantando, trabalhando e fazendo shows que eu exorcizo todos os meus fantasmas”, garante a cantora. “Nesse espaço artístico de criação eu tenho a possibilidade de recarregar as minhas energias e me equilibrar. Ainda sinto um frio na barriga antes de subir ao palco. Não me importa se é uma noite de estreia ou o último show de uma extensa turnê, eu fico ansiosa e emocionada antes de encarar o público. O dia em que eu perder esse tesão pelo meu ofício, com certeza vou me aposentar. Mas, por enquanto, o meu lugar é o palco.”
Da mesma forma, ela reitera, o cotidiano fora dos holofotes também a arrebata. “Adoro ser dona de casa e cuidar do meu filho. Vou à reunião da escola, cozinho, vou ao supermercado, vou ao shopping e ao cinema. Mas faço tudo isso consumindo a minha
força motriz: música.”
Na vitrola da casa de Gal há discos para todos os gostos: ela nunca se sentiu presa a nenhum gênero musical. “A grande sabedoria e riqueza de um artista é o entendimento de que ele pode fazer o que quiser, não ter medo de arriscar”, ela afirma, dizendo que uma das personalidades que mais a encantaram nos últimos anos foi Amy Winehouse, “com uma postura transgressora e, ao mesmo tempo, uma carga dramática praticamente insuportável”. Gal acredita que Amy tinha uma espécie de rebeldia sonora comum a João Gilberto, outro de seus grandes ídolos. “Fiquei maluca na primeira vez em que o ouvi cantando. Era moderno, mas não de fácil digestão. À época eu já tinha essa tendência que carrego comigo, de gostar de experimentar o diferente”, relembra. “Enquanto houver lenha, vou trabalhar para que essa chama continue a arder.”