Maria Bethânia, neste ponto da sua carreira (46 anos em 64 de vida) não precisa de provar nada, nem em Portugal nem no mundo. É uma das maiores cantoras de toda a história do Brasil e, num espectro mais alargado, também da história da música. O concerto que agora trouxe a Lisboa, porém, ficou muito aquém do que se lhe conhece e do que, dada a propaganda que o antecedeu, se esperaria. Apaixonada por Lisboa, pelos poetas portugueses e pelo muito que nos une e saudavelmente separa, Bethânia trata, há décadas, Pessoa por “tu” (nos seus vários heterónimos), ama a poesia de Sophia e tem vindo a aproximar-se de outros poetas portugueses, como Manuel Alegre ou Natália Correia, incorporando-os nos seus espectáculos. Fá-lo por paixão, não por calculismo “diplomático”. E essa ligação, tão forte, teve expressão maior em trabalhos de inegável excelência como “Âmbar” (1996) “Imitação da Vida” (1997), “Diamante Verdadeiro” (1999) ou “Mar de Sophia” (2006). Por isso, seria de esperar que num espectáculo (ainda por cima único, pensado para ser apresentado apenas em Lisboa) chamado “Especial Portugal”, essa aproximação tivesse uma síntese à altura. Não foi, no entanto, o que aconteceu, como pôde testemunhar a audiência que superlotou o Coliseu de Lisboa.
Atrasada meia hora (pelo que pediu desculpa; ela que é, disse-o, “pontualíssima”), Maria Bethânia juntou, de forma desigual e por vezes desconcertante, pedaços de espectáculos anteriores, parecendo muitas vezes alheia de si mesma, longe da figura magistral que em palco, sua casa desde sempre, habitualmente se transfigura para lá da simples materialidade humana e se deixa possuir pela música, pela palavra, pelo gesto. Um dia depois de ter sido agraciada pela Câmara Municipal de Lisboa com a Medalha de Mérito (grau ouro), Bethânia pode ter querido retribuir o gesto, com o esforço possível. Mas, depois de tantos espectáculos extraordinários, alguns mesmo geniais, que em Portugal apresentou nas últimas décadas, este há-de diluir-se no esquecimento. Não só pelo que já se disse, como pela frágil ligação (coisa rara) entre a cantora e os músicos.
O início recordou, logo, “Imitação da Vida”: “Iansã”, seguida de um excerto do “Livro do Dessassossego” (Pessoa na pele de Bernardo Soares) e da belíssima “Chão de Estrelas”, de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa. Depois, Chico e Milton: “Rosa dos ventos” e “O cio da terra”. “Avé Maria do morro” e um momento de prece mariana em forma de canção abriram caminho a uma espécie de “suite” Caymmi: “Festa de rua”, “Você já foi à Bahia?”, “São Salvador” e “Adalgisa”. Óbvias, na sequência, “Marinheiro só”, de Caetano, mais “Meu amor é marinheiro” (que, ao contrário do anunciado, não foi nenhuma estreia: Bethânia já a cantara, em Portugal, em “Diamante Verdadeiro”). No meio, um excerto do belo poema de Sophia “Marinheiro sem mar”. Tudo certo, mas demasiado mecânico. Com outro espírito, talvez fosse fabuloso. E, por causa de Junho e das festas/devoções populares, vieram depois os santos: “Santo António”, “São João Xangô menino” (ténue lembrança dos Doces Bárbaros) e a quase brejeira “Cheira bem, cheira a Lisboa”, que, de novo a contrariar o anunciado, não foi “estreia absoluta”: ela já a cantara, com o irmão Caetano, no concerto conjunto do Pavilhão Atlântico, em 2000.
Após um interlúdio musical, a cargo da banda dirigida pelo violonista e maestro Jaime Alem, Bethânia voltou para lidar, mas branda, com as tempestades das paixões: “Beira-mar” (“Dentro do mar tem rio.../Dentro de mim tem o quê?”) e, entre duas portentosas canções de Caetano, “O quereres” e “O ciúme”, excertos de poemas de Pessoa/Álvaro de Campos, (“A passagem das horas”) e Clarice Lispector (“Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas…”). “Fonte” antecedeu (aqui sim) uma estreia em palco e em disco: “Eu velejava em você”, de Dusek. “Costumes”, de Roberto e Erasmo Carlos, tornou ainda mais tépida a presença de Bethânia, que aos poucos recuperou com “Meu primeiro amor” (guarânia que pontificou no saudoso “Drama 3º Acto”), “João e Maria” e a fresquíssima e genial “Brisa”, sobre poema de Manuel Bandeira. “Alegria”, de Arnaldo Antunes”, “Todo o sentimento”, de Chico Buarque” e a festiva “É hoje”, de Didi e Mestrinho, que Caetano também costuma cantar, fecharam oficialmente a noite.Nos “encores”, dois, vieram “Reconvexo”, de Caetano (momento em que ela apresentou pela primeira vez, e rapidamente, os músicos); e “Mensagem”, de Cícero Nunes/Álvaro Cabral, que Bethânia intercalou com excertos de “Todas as cartas de amor são ridículas”, de Pessoa. Quando as luzes se acenderam, foi aceite naturalmente o fim. Já não havia nada a pedir, na confusão de não se saber o que se tinha, verdadeiramente, recebido.
Fonte: Público