Quando o sertanejo pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989) conquistou o Brasil com “Asa Branca”, em 1947, um menino de seis anos, seu conterrâneo, começou a tocar sanfona na cidade em que nasceu, Garanhuns. Dois anos mais tarde, o pequeno José Domingos de Moraes se apresentou para o futuro “rei do baião” em pessoa - já era músico de rua, tocando pandeiro, e não sanfona.
Aos 13 anos, o menino migrou para Niterói com a família, numa viagem de pau-de-arara que durou 11 dias. Seu pai, mestre Chicão, era conhecido tocador e afinador de foles de oito baixos, e procurou Gonzagão logo na chegada ao Rio. O cantor de “Baião”, “Assum Preto” e “Paraíba” passou logo a apadrinhar o pequeno José, que foi apelidado primeiro de Neném do Acordeon e, mais tarde, de Dominguinhos. A proximidade durou enquanto Luiz Gonzaga viveu, e o parentesco musical se mantém até este ano de aniversário de 70 anos do menino Dominguinhos, completados no último dia 12.
Adoentado após um princípio de infarto e um cateterismo, o aniversariante faltou à própria festa, que aconteceria no dia 13, na casa paulistana de forró Canto da Ema. Convidados especiais de várias gerações, como Elba Ramalho, Oswaldinho do Acordeon, Mariana Aydar e Duani, tiveram de homenagear o aniversariante em sua ausência.
Dois dias antes, Dominguinhos havia falado ao iG por telefone, demonstrando entusiasmo com o aniversário, a festa, as histórias fabulosas do passado, o momento de revalorização da sanfona pelas mãos de músicos jovens, como o pop-roqueiro-emepebista Marcelo Jeneci, e de cineastas, como Sergio Roizenblit, diretor do documentário “O Milagre de Santa Luzia”, recém-editado em DVD.
Falou sobre momentos de baixa e de alta, como a fase de “pau no sanfoneiro” iniciada pela bossa nova e a temporada de intenso sucesso pop resultante das gravações de suas “Eu Só Quero um Xodó” (1973), “Tenho Sede” e “Lamento Sertanejo” (1975) pelo tropicalista baiano Gilberto Gil. Comentou, também, sua nem sempre percebida onipresença na música brasileira pós-anos 70, como músico de estúdio num arco amplo e democrático que vai de Luiz Gonzaga a Gilberto Gil, passando por Gal Costa, Raul Seixas, Odair José, Chico Buarque, Roberto Carlos e duplas caipiras.
iG: Como era a sua relação com Luiz Gonzaga?
Dominguinhos: Conheci Gonzaga até sem saber quem era. Eu tinha oito anos, não sabia quem era artista nenhum. Eu e meus irmãos tocávamos na porta do hotel em que ele ficou. Eu tocava pandeiro. Botaram a gente pra tocar lá pro homem. Ele nos deu o endereço dele no Rio, nos deu dinheiro. Passados alguns anos, meu pai um dia se cansou de Garanhuns, pegamos um caminhão pau-de-arara, 11 dias de viagem, e fomos bater em Nilópolis (RJ). Aí eu tinha 13 anos. Ficamos em Nilópolis a vida toda, ali casei e tive família. Gonzaga deu uma sanfona para meu pai na mesma hora em que chegamos. Pronto, ficou nosso amigo e me protegendo.
iG: Vocês eram músicos de rua?
Dominguinhos: É, pra ajudar. A gente tocava nas feiras, nesse hotel, em botequins. Aí apareceu uma senhora, Almerinda, dona de uma escola em Olinda, e perguntou se a gente queria estudar. “A senhora fala com o pai.” Levamos ela pra conhecer pai, pai deixou a gente estudar. Ficamos entre três e quatro anos internos nesse colégio dela. Quando nós voltamos, meu pai levantou a ideia de ir pro Rio de Janeiro. Em Olinda, o dono da Rádio Clube de Pernambuco nos deu de presente um acordeon de 48 baixos. E aí a senhora Almerinda, além de dar os estudos, tornou-se nossa empresária, vendendo apresentações pras festinhas de menino mais rico. Levantava um cachê lá, nunca mandou nada para meu pai, nem nunca nos ajudou - só com uma roupinha, pra gente tocar bonitinho.
iG: Seu pai era fã de Luiz Gonzaga?
Dominguinhos: Acredito que sim, apesar de nós termos grande dificuldade de ouvir Luiz Gonzaga naquela época. Só quem tinha rádio, né?
iG: Não se ouvia nas ruas, nas praças?
Dominguinhos: Não, eu não prestava nem atenção, só tinha oito anos. Tinha que ter um rádio, e era muito difícil pra meu pai ter um rádio bom, não tinha rádio de pilha (ri). O pessoal que tinha rádio escutava Carlos Galhardo, Vicente Celestino, Dalva de Oliveira, Orlando Silva. Gonzaga teve a maior luta pra deixarem ele cantar. Na Rádio Nacional ninguém queria que ele cantasse, era apenas sanfoneiro acompanhador. Depois é que abriu caminho, e aí foram Jackson do Pandeiro, Genival Lacerda, foi chegando todo mundo.
iG: A rejeição era por preconceito?
Dominguinhos: Foi o que mais ele enfrentou.
iG: Você enfrentou também?
Dominguinhos: Enfrentei ainda um pouco, aqui em São Paulo mesmo. E olha que de 1964 pra cá eu gravei muito disco, já tinha até um nomezinho com Anastácia, minha parceira. Jorge Paulo era um paulista que levava ao programa dele Coronel Ludugero, Anastácia, eu, Ari Lobo, todo mundo da música nordestina que vinha a São Paulo. Ele era o Bandeirante do Norte - naquela época não chamava Nordeste, chamava Norte. O Norte nunca deu nada assim em relação à música nordestina, lá gostam mais é de brega, merengue, música caribenha, reggae. Mas Jorge vendeu um showzinho pro Garitão, uma casa ali perto da avenida São João, que tinha vários conjuntos tocando música americana, bossa nova, o que pintasse. Quando Jorge anunciou a música nordestina, ou a música do Norte, e me chamou, ah, choveu assovio, mal-estar, aviãozinho.
iG: É muito ruim receber vaia?
Dominguinhos: (Ri) Mas eu não liguei, não. Comecei a tocar “Lamento Sertanejo”, sozinho. Comecei a improvisar, e foram se acalmando, deixaram a gente trabalhar em paz. Mas eu passei alguns pedaços aqui.
iG: A bossa nova não gostava de sanfona. Tinha a ver com isso?
Dominguinhos: Não, acho que não. Eu ia lá tocar baiãozinho, né? Naquela época a gente só falava em baião, não falava em forró. Depois é que Gonzaga mudou a batida do zabumba, deixou mais suingado, aí veio essa palavra forró, que já falavam havia muitos anos, no “Forró de Mané Vito”, (canta) “seu delegado, digo a vossa senhoria que sou fio de uma famia que não gosta de fuá/ mas tresontonte no forró de Mané Vito...”, e em outras músicas mais.
iG: João Donato tocava sanfona, mas a bossa nova baniu o instrumento.
Dominguinhos: Wagner Tiso também tocava, Gilson Peranzzetta toca até hoje, e bem. A gente amargava essas coisas nos anos 60. O violão tomou conta, o órgão saiu da igreja. E aí, pau no sanfoneiro. Todos passaram pro piano, até Caçulinha passou - mas ele manteve o regional, acompanhando Elis Regina, Elizeth Cardoso, na TV Record. Com essas desavenças todas, a coisa ficou feia. Falei: “Não vou passar pro piano, porque não vou tocar direito”. Meu irmão passou bem ligeirinho. O Teatro João Caetano, no Rio, era o ponto dos músicos, a gente ia lá toda terça-feira pra arranjar baile. Meu apelido era Neném, “ô, Neném, tem baile sábado?”. “Não.” “Então tá contratado.” Era uma feira mesmo, minha vida era ali, fazendo baile, tocando com Luiz Gonzaga, vendo ele tocar mais do que tocando. Ele gostava de mim e já me apresentou como seu herdeiro musical.
iG: Até para ele as coisas ficaram difíceis nessa época, não?
Dominguinhos: Ah, ele ameaçou parar várias vezes. João do Vale fez música pra ele cantar, falando “pra onde tu vai, baião?”. Depois, no outro dia, ele já mudava de opinião.
iG: Por outro lado, nos anos 70 o pessoal da tropicália resgatou Gonzaga e a sanfona. Você também tocou com eles todos.
Dominguinhos: Ah, foi. Toquei no show “Gonzaga Volta pra Curtir”, dirigido pelo Jorge Salomão, irmão do Waly. Gilberto Gil tinha voltado daquela rebordosa, com Chico Buarque, Caetano Veloso, e esse pessoal ia assistir todo dia. Gal Costa não saía de lá. Eu já conhecia eles todos, e aí a gente incrementou mais a amizade. Gil tinha sido sanfoneiro também, tinha tudo a ver. Aí, pronto, a gente foi representar o Brasil em Cannes, e na volta o Guilherme Araújo, que era empresário dos baianos todos, me chamou pra fazer o show “Índia”, da Gal. Foi disco e show, andamos este Brasil todo, e aí a sanfona falou alto. Ela tirou logo o tecladista! Depois, quando pedi pra sair, botou o João Donato no meu lugar.
iG: Como começou a sua parceria com Anastácia?
Dominguinhos: Começou numa viagem com Gonzaga, quando a gente fez uma excursão pelo Nordeste. Eu era o motorista da Kombi. Fui dirigindo, Gonzaga foi de avião. Eu nunca tinha feito música com letra, só fazia instrumental e guardava pra mim mesmo. Anastácia estava no outro quarto e eu estava tocando uma melodia. Ela foi botando a letra, chamou “Mundo de Amor”. Fiquei muito contente com aquele acontecimento, e ela passou pra Marinês, que foi a primeira a gravar. Veio Gil com o “Só Quero um Xodó” e abriu muito mais ainda os caminhos. As pessoas começaram a me conhecer como compositor. Até então eu era um músico, tocava na noite, nas rádios, era mais conhecido que farinha ruim, mas só como Neném do Acordeon.
iG: Você e Anastácia eram um casal?
Dominguinhos: É, teve um lance aí. Ficamos um bocado de tempo tendo um caso, mas eu era casado lá no Rio, tinha dois filhos, era um negócio sem futuro. Mas a gente vivia bem, não tinha arengação. Teve depois, mas antes não (ri). Foi Anastácia quem me botou mesmo como compositor, botando letra, me encaminhando. Foi lindo. Ela fez tudo o que tinha pra fazer nas músicas que eu tinha deixado, não deixou uma em branco. São 210. Hoje em dia a gente é amigo, participa das coisas um do outro.
iG: Mais no final dos anos 70 fizeram sucesso novos artistas como Elba Ramalho, Zé Ramalho, Alceu Valença, Fagner , que revalorizaram mais uma vez a música nordestina.
Dominguinhos: É, Fagner foi o primeiro. Ele me chamou pra tocar em “Súplica Cearense”, já em 1972.
iG: Antes de Gil e Gal?
Dominguinhos: Isso, isso. Gravou “Súplica Cearense” na Philips, que era ali na avenida Rio Branco, onde a gente tinha um ponto de músicos também. Vivíamos juntos eu, Agnaldo Timóteo, Raul Seixas. Era uma miscelânea.
iG: Todo mundo se dando bem?
Dominguinhos: Então! Raul era brincalhão, uma beleza.
iG: Ele era roqueiro, mas também gostava de uma sanfona.
Dominguinhos: Gostava! Eu mesmo toquei no disco dele, um negócio lá de uma toada. Ele falava e cantava muito em inglês, mas o calcanhar de Aquiles dele era esse escritor famoso, Paulo Coelho era o coelho do Raul. Era nas letras dele que Raul trabalhava. Conheci muito ele, tenho maior vontade de encontrar.
iG: Por quê?
Dominguinhos: Pra gente relembrar os discos. Ele era uma figura presente demais ali. O diretor musical era Roberto Menescal, e todo mundo gostava de ficar por ali, Chico Buarque, todo mundo aparecia nem que fosse pra prassear.
iG: Essas relações mostram que você era um discípulo de Luiz Gonzaga que soube transitar por vários lugares da música brasileira?
Dominguinhos: Pois é, eu era músico de estúdio também. Gravava com todo mundo. Quando Djavan chegou no Rio, já gravei com ele. Da colônia nordestina, não escapou um. Eu fazia todo o trabalho musical, produção e acompanhamento, junto com o regional de Canhoto. Jackson Pandeiro tocava reco-reco nas gravações. Marinês tocava triângulo. Coronel, do Trio Nordestino, tocava zabumba. E a gente fazia aquela mistureba com o regional do Canhoto. Abdias, que era o marido de Marinês, sanfoneiro de oito baixos, foi o produtor de uns 20 discos da CBS.
iG: Você tocava em discos que não eram da “colônia nordestina”?
Dominguinhos: Ah, tocava. Quando tinha uma sanfona, em qualquer disco, os produtores geralmente me chamavam. Lembro de Djavan, Raul Seixas, e outros amigos lá que não tinham nada a ver. A gente gravava muito, às vezes não sabia nem que era o artista.
iG: Raul, Djavan, Gal e Gil são nordestinos, não deixam de ser da colônia...
Dominguinhos: Todo mundo, rapaz, Belchior. Sidney Magal também, conhecia ele da Philips. Ele era quem sustentava a venda de discos pra pagar os de Caetano, Gil, todo mundo, porque esses não vendiam nada. Elementos assim como Sidney Magal, populares, eram quem estourava, e aí sustentavam os outros (ri).
iG: Com Roberto Carlos você só foi tocar recentemente?
Dominguinhos: Mas eu conhecia ele desde os anos 1960. Eu tocava na Boate Plaza, ele ia sempre lá, queria cantar, não deixavam. Quando Claudette Soares ia cantar deixavam ele ir junto, aí não podiam dizer nada. Depois foi contratado pela Boate Plaza, teve carteira assinada e tudo. Conheci Roberto naquele tempo, e ele depois viveu muito em São Paulo com aquela jovem guarda...
iG: Que foi quando o órgão saiu da igreja, como você disse?
Dominguinhos: Exatamente. Depois, com esse evento do chamamento do Gil e da Gal, as coisas foram mudando, mudando, mudando. Sivuca passou 18 anos nos Estados Unidos, tocava violão e sanfona com (a cantora africana) Miriam Makeba. Um dia Chiquinho do Acordeon falou com ele por telefone: “Venha-se embora, rapaz, aqui o acordeon voltou. Tem um garoto aqui chamado Neném que tá tocando barbaridade”. Eu era amigo deles todos, tinha em mente várias tendências. Na boate era música americana rolando de tudo quanto era jeito, eu levava minha sanfona e dava canja até o dia amanhecer. Ninguém ganhava um puto, mas aprendia pra danar. Cauby Peixoto, Wilson Simonal, todo mundo dando canja de graça.
iG: A sanfona está sendo redescoberta? Hoje há jovens como Marcelo Jeneci fazendo música pop com sanfona.
Dominguinhos: Muito, muito, estão surgindo aí muitos valores. Jeneci é filho de um amigo meu. Começou tocando teclado, mas depois passou a tocar as duas coisas. O pai dele faz eletrificação de sanfonas, é o melhor cara pra fazer som de sanfona, Manoel Jeneci. Marcelo é um bem novatinho, mas nós temos aí Toninho Ferragutti, Waldonys, que é meu afilhado, Adelson Viana. Tem uma garotada toda que está surgindo tocando sanfona pra caramba, muita gente boa. Nunca se vendeu tanta sanfona, e é um instrumento caro, qualquer instrumento meia-boca é R$ 12 mil. É um instrumento que no mundo todo tem muito valor, tem grandes instrumentistas italianos, japoneses, chineses, americanos, canadenses. E o italiano é quem faz a melhor sanfona no mundo.
iG: No Brasil, um pais que deve muito à sanfona, ela é menos valorizada do que merecia?
Dominguinhos: Acho que é, bastante. Mas estão descobrindo no Brasil também. Tem um detalhe: lá em Campina Grande (PB) tem uma fábrica pequena de acordeon, do Amazan, um cantor popular que faz repente tocando sanfona. Ele me trouxe uma sanfona de presente, feita na fábrica dele. Teve também dois italianos. Ganhei três instrumentos de uma hora pra outra.
iG: Quantos você tinha?
Dominguinhos: Já tinha um. Não, tinha dois. Agora tenho cinco acordeons. A minha mesmo é a Juliette, mas ela tem 13 quilos, e estou evitando peso. A do italiano tem 10,4 quilos.
iG: Os mais jovens estão reconhecendo mais a música caipira?
Dominguinhos: A Globo levou muito tempo pra botar os caipiras. Hoje pode ser mais caipira, pode ser mais country, mas Zezé di Camargo & Luciano, Chitão & Xororó e, muito antes, Tonico & Tinoco já andavam por aí e ninguém deixava eles entrarem na televisão. De uns anos pra cá, começaram a botar todos, que não são mais caipiras, são cantores românticos, Daniel...
iG: Talvez tenham sofrido até mais preconceito que Luiz Gonzaga?
Dominguinhos: Ah, mais do que Gonzaga, não, porque Gonzaga queria implantar um sistema que ninguém conhecia. E ele era preto, de chapéu de couro. Paramentava todos os acompanhantes dele, um era um anãozinho que botava um punhal de um lado e uma cartucheira do outro, o pessoal ficava com medo. Mas não usava revólver nem nada assim de bala. Alguns usavam, mas ele não. Botava um chapéu de cangaceiro, um lenço no pescoço. Tinha hora que os acompanhantes usavam fraque, e ele lá de chapéu de couro. Ele tentou de várias formas mostrar que cantava também, mas o pai do Edu Lobo, que era diretor da Rádio Nacional, colocou lá um dizer: “Gonzaga é só acompanhante, não pode cantar”. E ele era nordestino também, o Fernando Lobo, mas pegou no pé do Gonzaga direitinho.
iG: Você manteve um chapeuzinho, que não chega a ser de cangaceiro, mas faz referência.
Dominguinhos: É, o meu é menorzinho, né? Mas eu usei o grande também. Tenho um grande, feito pela mesma pessoa que fazia os gibões de Gonzaga.
Fonte: Último Segundo