Lançamento da Semana em Portugal
Vanessa da Mata - Bicicletas, Bolos e outras Alegrias
Leveza é a palavra. Depois de escutar o novo disco de Vanessa da Mata é essa a palavra que flutua dentro de mim, como eu mesmo, perdido do peso e de outras gravidades, me sinto capaz de sonho e viagem. Entender não é exactamente o que se quer, depois dessa inundação. Acredito, no entanto, que essa leveza surge pelo talento de Vanessa para costurar palavra e som, como se ela soubesse que poesia e música são dois nomes de uma mesma linguagem divina. Esta nova obra de Vanessa é um tapete de fiações diversas, como tecida de vidas foi a sua própria vida. Citando a própria autora, são "palavras que rezam", palavras para serem ditas pelo corpo, canções para se ver versos.
Acertei com Vanessa escrever umas tantas linhas para este disco estava eu, há uma semana, saindo do Brasil para Moçambique. Durante a viagem de regresso, me compenetrei que eu precisava conhecer melhor o trabalho dessa jovem, mas já consagrada compositora e intérprete brasileira. O que eu conhecia, porém, já me levara à aceitação da incumbência, como um adolescente entusiasmo. Eu tinha encontrado a cantora no ano anterior, num restaurante do Rio. Na altura, já me havia apaixonado por canções dela que me tomaram pela cintura e me conduziram a poéticas vagueações.
Nessa noite, jantamos com amigos e ficamos amigos. Vanessa estava preparando-se para um show que decorreria umas poucas horas depois. Pensei no momento: se fosse eu, em véspera de espectáculo, estaria já morrendo de parideiras dores. Mas ela ali estava, completa e serena, como se não houvesse a vizinhança de um caminhar descalça sobre o labaredas. A razão dessa serenidade não seria qualquer coisa que pudéssemos chamar de traquejo profissional. Vanessa cantaria com a mesma naturalidade com que ela estava ali desfiando palavras e tecendo lembranças. Dela me ficou uma indelével impressão de luminosidade, como se nela se confirmassem as palavras da sua própria canção "a manhã chega, chega, chega...".
Em manhã eterna viviam a sua alma, a sua voz. Essa mulher que Maria Bethânia já havia chamado de "palmeira imperial" inspirava em mim o efeito da fronde das palmeiras: um repouso na fronteira entre sombra e Sol.
Disse a Vanessa que este meu breve texto seria apenas a confissão de uma emoção, a impressão de quem não sabe senão do gosto de converter a vida numa infinita escuta. Foi assim que ouvi o novo disco Vanessa. Talvez "ouvir" não seja o verbo certo. É preciso deixar-se tomar por esse embalo de fala e canto, esse balanço que nos faz dançar versos.
Nesta obra nova é difícil vislumbrar um padrão musical definido. As misturas são intencionais, várias e plurais, desde um piscar de olhos à tradição popular brasileira até ao namoro com esta áfrica onde eu faço chão e céu. Mas existe uma constante que se sobrepõe a esta diversidade. A alusão à luminosidade, à lua, ao Sol, é recorrente na maior parte das faixas. E isso confirma toda a minha lembrança: Vanessa vem à tona da luz para respirar. E para nos fazer respirar não armas claridade. Cada canção é uma janela. Que se abre para o lado de dentro do Sol.
Mia Couto,
Maputo, Setembro de 2010
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CD Bicicletas, Bolos e outras Alegrias
Faixa a faixa por Vanessa da Mata
1 - O Tal Casal
Essa é uma música declaradamente romântica. Me lembro de uma frase que alguém da minha família dizia quando eu era criança: "quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora" ou "ninguém me ama, ninguém me quer, vou ser freira no sacrecouer". Pensei que essa música pudesse ser o contrário disso quando a escrevi, romântica e bem resolvida. Tem um arranjo que gosto muito, Marcelo Jeneci colabora intensamente, junto com a banda, do começo ao fim. O que gosto nela é que ela começa suave e se intensifica principalmente do meio pro final, crescendo ao contrário de um arranjo certeiro que geralmente começa com tudo. Ela ganhou cordas que a engrandeceram... As cordas, o violino, geralmente, dão glamour a canção, principalmente aquelas que falam de amor. As cordas fazem uma linha como se flutuassem dentro da harmonia. Eu acho que realmente ela ficou muito bonita!
2 - Fiu Fiu
Sempre gostei desse assovio, acho popular e indicado para mulheres mais voluptuosas. Quis colocá-lo em uma contradição do que rola hoje em dia. Você, sendo mulher, quer ser bonita para os homens ou para as mulheres? Tudo isso depende. Se quer o assovio é melhor estar “provida de carnes”. Se quer estar na moda, a moda é feminina, precisa estar magra, o quanto? É disso que se trata essa canção.
3 - Te Amo
Eu sempre ouvi a música “Primavera” e a achava incrível e perguntava: como Tim Maia numa frase tão kitsch, tão clichê, consegui fazer aquela música linda... ? Eu adoraria fazer uma canção que tivesse “te amo”, mas que tivesse também esse “clichê ideal”, que tivesse um assunto a mais, como essa música tem. Não há como comparar, mas eu queria que ela levasse a uma vontade de ouvi-la sempre, que a gente se identificasse e entrasse nela. Queria que ela falasse um pouco desse medo que todo mundo tem de se entregar, de se soltar, porque é disso que ela trata.
Adoro as cordas que embalam esta canção. Elas têm romantismo, cores, imagens... Foi um arranjo muito pronto do começo ao fim.
4 - Meu aniversário
Meu aniversário foi feita no dia do meu aniversario, 10 de fevereiro, na Bahia.
Eu estava com muito bom humor, como sempre estou nos meus aniversários! Eu adoro fazer aniversário! Tem gente que fica mal, que pensa só no fato de estar envelhecendo. Eu amo! É sempre uma festa, eu me sinto em um dia especial. Acho incrível, saio na rua me divirto, acho que é realmente o meu dia! Quero sempre fazer uma comemoração. Meu aniversario foi feita assim, para mim, para eu dizer "parabéns eu"!
5 - Vê se Fica bem
Essa música pega os rapazes de uma maneira muito maluca... Dois rapazes que ouviram essa música durante as gravações ficaram tão cismados que voltaram pra suas namoradas... “Ai, eu estou sentindo uma coisa... Ela fala exatamente isso pra mim... Vê se come bem, vê se dorme bem”, que é uma maneira feminina mesmo de cuidar. Eu fiz essa música pensando numa coisa não assumida de alguma das partes e foi providencial. É uma música doce, mas que pode ser ácida.
6 - Bolsa de grife
É uma música ligada a auto estima. Sempre pensei que as grifes funcionam muitas vezes para uma auto afirmação. Vejo pessoas que não tem dinheiro e que, mesmo assim, compram coisas caríssimas apenas para manter as aparências de vencedoras, bonitas, legais... Acho que essa música foi feita pensando nos arranjos dos Mutantes.
7 - As Palavras
Não gosto de falar o que cada música tem de significado pra mim, porque isso acaba limitando a imaginação de cada um. Quero que cada um beba a música e sinta o gosto dela, da sua maneira. As Palavras é isso, cada palavra tem seu significado, sua energia... Se pecado não significasse pecado, poderia significar amor... Depende do que você entende disso. Essa música dá um gosto de Roberto Carlos em minha boca, quando eu a canto, lembro muito dele.
8 - Bicletas, bolos e outras alegrias
Ela tem cara de música que finaliza o show, totalmente rumo à lua. No encarte do álbum, traz a receita do bolo de fubá de minha Vó Sinhá, é mais uma homenagem que fiz a ela... Esse é um bolo da família. É uma brincadeira, uma música que é muito divertida, é o título do disco. Fala da bicicleta, fala do bolo, fala da necessidade de compartilhar com outras pessoas. Sempre falo dos doces, dos quitutes. Fui criada por uma vó quituteira que deixava sobre a mesa, durante toda a tarde, bolos e outros quitutes a quem quisesse se servir.
É isso: “Quem diz que faniquito não cura? Quem diz que açúcar e afeto não podem curar?". Esta frase eu tirei de uma lembrança que tenho da música “Com Açúcar, com Afeto” de Chico Buarque. Era mesmo assim na casa de minha avó, todos os carinhos se faziam com as mãos e com os quitutes. Era a reza da nossa família.
9 – Vá
Esta é uma parceria minha com o Lokua Kanza, eu fiz melodia e letra e ele fez harmonia. É uma música de despedida, de dor profunda... Eu mandei essa música pra uma cantora há algum tempo atrás, essa letra não estava pronta, e ela me devolveu e falou “eu não posso cantar essa música, eu não consigo, eu ouvi, eu aprendi, mas quando eu comecei a cantar eu só chorava...” e me devolveu. A canção tem realmente uma carga muito doída, muito difícil... Eu não sei onde busquei isso, deve ter sido de alguma desilusão passada na minha vida, ela tem uma morte sentimental dentro dela, uma desilusão muito profunda, mas que fecha no final todos os centímetros de um ferimento mortal. Ela pega pelo braço, mergulha o sujeito na dor e tira quando ela acaba. Me sinto como se saísse dela sã e salva. Como se estivesse pronta pra vida mais leve.
10 - Moro longe
"Moro Longe" tem um quê do Norte. A pessoa retratada é muito prática, muito objetiva... Tipo... “olha, tudo bem, eu vou pra sua casa, mas eu não quero nada mini, quero que você me apresente uma noitada boa!!” Ela tem uma negociação prática e certeira, que é a graça dela. Não há romance. É uma negociação maravilhosa, “se eu for aí, faça valer a pena”. Ela é bem percussiva. A gente tentou vários arranjos e, com certeza, esse foi o melhor.
11 - O Masoquista e O Fugitivo
Para mim ás vezes o fugitivo parece um sádico, em outros momentos penso que ele é apenas um sobrevivente daquela situação. É um prisma de quem quer a felicidade e não suporta a dramaticidade ao cubo. Ela é solar, dourada, e beijoqueira. Está passeando no calçadão em um dia de Sol cheia de sorrisos.
12 - Quando amanhecer
É fruto de um encontro bonito que tive com Gilberto Gil. Para mim foi é uma honra! O que falar dessa música? Ela diz tudo. Tenho profunda admiração pela obra de Gil desde que a conheço. Além do mais ele foi muito generoso indo ao estúdio e gravando essa faixa comigo. A vozes estão lindas e parceiras do começo ao fim, sem intercalações.
Fonte: Sony Music