Gal Costa andou relativamente silenciosa nos últimos cinco anos. Desde Hoje, de 2005, não voltou mais aos estúdios para gravar um álbum inédito. Neste 2010, a mudez começa a ser rompida com a edição da caixa "Total", que inclui 15 discos lançados pela gravadora Philips (atual Universal) entre 1967 e 1983. O ciclo se completará quando Gal lançar, 28 anos mais tarde, o disco de retorno à Universal, que está sendo preparado sob produção de Caetano Veloso e de seu filho Moreno Veloso.
"Vai ser um disco de canções inéditas de Caetano feitas para mim”, adianta, durante entrevista agendada em parceria com a Universal para divulgar o lançamento de Total, que custará em torno de R$ 290 e traz, como atrativos semi-inéditos dois volumes de raridades editadas originalmente em discos de festival, trilhas sonoras (como a do filme "Brasil Ano 2000", de 1969), trabalhos de outros artistas (como Erasmo Carlos, Maria Bethânia e Ney Matogrosso) e compactos da própria Gal (o que inclui as hoje pouco conhecidas versões de estúdio dos clássicos "Vapor Barato" e "Sua Estupidez", do disco ao vivo "Fa-tal", de 1971).
Gal desce para a entrevista num salão de hotel de São Paulo, onde tem passado alguns dias após o show de voz e violão que fez no Anhembi – morando em Salvador, não votou no primeiro turno das eleições. Está serena, mas reclamando de alergia e de pigarro. Conta que é internauta contumaz (“meu computador fica ligado o dia inteiro”) e constata: “No mundo de hoje a informação é tão rápida que, se você ficar um mês sem fazer nada, parece que você acabou, morreu, sumiu, desapareceu. Não dou bola para isso, sigo meu ritmo, que é o importante”.
Enquanto se prepara a parafernália de gravação, ameaça pouco falar: “Eu tenho preguiiiiça, só se você me perguntar. Se me perguntar eu falo, se não me perguntar eu não falo”. Diante das primeiras perguntas, põe-se a falar pelos cotovelos, sobre o passado, o presente e o futuro.
iG: Consta que, no show que fez no Anhembi, você falou bastante entre as músicas, e uma das coisas que disse é que é tímida. Como assim?
Gal Costa: É, eu estou falando muito mesmo. Eu sou tímida. Sou menos, muito menos tímida hoje do que era no início. Mas uma coisa curiosa é que a gente vai mudando sem perceber, não é? A vida nos leva a mudar, a transformar, e foi o que sucedeu. Eu quase não falava. No começo da minha carreira eu não dizia nem boa noite, não falava nada.
iG: Isso só no palco, ou na vida também?
Gal Costa: No palco, mas na vida também falava pouco. Era tímida bem lá atrás. Posso dizer que sou tímida, mas mais do que tímida sou uma pessoa zen. No palco hoje sou muito falante, mas falante de uma maneira espontânea. O que aconteceu no palco é que fico muito à vontade, mas muito à vontade mesmo, e falo o que vem na minha cabeça. Se alguém fala alguma coisa na plateia eu respondo, há uma interação. Sou até engraçada no palco, as pessoas riem comigo por várias vezes. É uma mudança mesmo que aconteceu, e eu não sei lhe explicar como. Comecei a fazer esse show de voz e violão, que exige uma comunicação com a plateia. Você não pode ficar num palco com um violão e muda. Isso também forçou um pouco a ter essa postura.
iG: Como é a timidez na sua vida, fora do palco?
Gal Costa: Ah, não sei. A minha vida fora do palco não é diferente da minha vida no palco. Quando entro no palco há uma transformação mesmo. Posso estar com alergia e a alergia vai embora. Posso ter um pigarro e o pigarro desaparece. Não sei o que acontece, o palco é uma coisa milagrosa, que mexe com o metabolismo da gente. É misterioso, algum cientista algum dia explicará isso.
iG: O palco, então, é remédio para timidez, pigarro, alergia?
Gal Costa: Para tudo (ri). O palco é muito bom. Mas essas mudanças são muito agradáveis. É muito bacana constatar que você mudou. Você de repente se vê mudada, transformada, e isso é muito bom, muito legal. E é a vida que traz isso, que dá esse presente para a gente, quando a gente está aberta para receber.
iG: Que outras transformações você sofreu?
Gal Costa: Ué, eu não sei dizer no quê, mas a gente se transforma. Você também está mais gordinho, está mais bacana (ri).
iG: No livreto da caixa "Total", você afirma que preferia não ter saído da Philips (hoje Universal), e é essa gravadora que está lançando a caixa.
Gal Costa: Eu preferia mesmo ter continuado. Na época se ofereciam luvas em dinheiro para os artistas saírem de suas gravadoras. A RCA queria mudar de cara, Manolo Camero assumiu a presidência da gravadora e me ofereceu uma luva. Sentei com Roberto Menescal (diretor artístico da Philips), disse que preferia ficar, porque minha história tinha sido lá desde o começo. Ele me disse que não poderia cobrir a oferta. Depois ele mudou de ideia, mas eu já tinha empenhado minha palavra. Fui para a RCA, que levou também Chico Buarque e Maria Bethânia.
iG: Pode falar um pouco sobre o volume de raridades que foi incluído na caixa "Total"?
Gal Costa: Tenho que ter meus óculos para ver o repertório. (Põe os óculos, folheia o encarte do CD.) Essas fotos são muito bonitas. "Dadá Maria" (1967) foi gravada ao vivo com Renato Teixeira, mas cantei também com... Silvio Cesar? Cantei ou não? Acho que sim. "Bom Dia" (1967) é linda, gravei em estúdio com Gil me acompanhando, se não me engano. "Domingo Antigo" (1968), é engraçado... Eu não lembro dessa gravação... Não reouvi nada ainda. "Acho Que Vou-Me Embora" (1968) eu conheço, acho bem bacana, de Sidney Miller. "Canção da Moça", "Homem de Neanderthal" (do filme Brasil Ano 2000, de 1969) também, não lembro dessa gravação com Bruno Ferreira.
iG: Quem é Bruno Ferreira?
Gal Costa: Eu não sei quem é, nem lembro. "Show de Me Esqueci", com Bruno Ferreira e Ênio Gonçalves, olha só que loucura. "Sem Grilos", "Acorda pra Cuspir" (1974), essas músicas eu gravava em compactos simples para o carnaval da Bahia, quando Caetano Veloso compunha para o carnaval baiano. Não tocavam aqui no sul, não. Eu fazia os compactos e a Philips mandava para o Nordeste. Nas rádios de Salvador e no trio elétrico tocavam.
iG: Aqui no sul mal circulavam?
Gal Costa: Aqui não circulavam. Não sei nem se naquela época tinha carnaval em São Paulo, tinha? Acho que não (ri). O Rio tinha carnaval, mas não tocava.
iG: Outra canção ali é "Modinha para Gabriela" (1975), tema da novela Gabriela. No livreto você diz que foi convidada pela Globo para interpretar Gabriela. Como foi isso?
Gal Costa: Fui. Daniel Filho chamou primeiro a mim para fazer o papel da Gabriela. Mas eu fiquei com medo. Se eu tivesse naquela época o temperamento que tenho hoje, talvez aceitasse. Mas achei que, não, não sou atriz, sou cantora, não vou fazer. E então cantei a música e a Sonia Braga fez a novela. Na verdade, talvez o espírito e a personalidade da Gabriela parecessem mais comigo.
iG: Por quê?
Gal Costa: Mais pura, mais... Tenho essa coisa de pureza, até hoje. Mas não sou atriz.
iG: Que lembranças lhe ocorrem vendo a capa de seu primeiro disco, de 1967, com Caetano Veloso?
Gal Costa: A lembrança que mais me ocorre aqui (manuseia a capa da reedição em CD) é a dificuldade que a gente teve de gravar. A gente dormia muito tarde e acordava muito tarde, e o horário que nos sobrou era o horário da manhã. Eram três turnos de estúdio: pela manhã, que começava às 9 horas, à tarde e à noite, e nós ficamos com esse das 9 da manhã. As grandes estrelas ficavam com os horários da tarde e da noite, e nós de manhã. Era difícil acordar cedo, ir lá, gravar, cantar, estar com a voz legal. Mas a gente fez. É superbacana, depois de anos, olhar isto aqui, porque é o primeiro disco, eu e Caetano juntos. Você vê que tem uma identificação, também por tudo que ele passou, tudo que eu passei – durante o exílio dele fiquei aqui, minha imagem se parecia muito com a dele. E também pela nossa identificação musical, que vem através de João Gilberto.
Fonte: IG Música