Prestações portuguesas e brasileiras foram as que mais brilharam no Festival da Ajuda.
Três dias de lua cheia de frente para a bênção do Tejo, num festival que afina pelas sonoridades dos países na rota da produção de café, e onde a Delta, patrono secundado pelo Montepio, aproveitou para apelar à sustentabilidade ambiental e comércio justo. Limados os acidentes da pedra com generosas toneladas de terra, o mote "levantar poeira" e tirar o pé do chão fez-se valer e ver ao longe.
No 1º dia, enquanto Bossa 'n Stones ia exterminando todos os covers em que tocava, Sons da Fala iam-se impondo, com David Fonseca a capitalizar aplausos entre os seus seguidores e Martinho da Vila a ocupar o trono da noite.
No dia seguinte - o delas, portanto - dir-se-ia que Mart'nália pegou no repique da véspera, desfilando muitos clássicos do pai da Vila. De Vinicius a Djavan, trouxe um bocadinho de tudo e percorreu todos os registos que samba tem, do pé ao salão, da avenida ao boteco de esquina. Depois dela, com Ana Carolina, a mais aguardada, o recinto atingia uma lotação que não voltaria a ter. Guitarra na mão, entrou a rasgar e foi grandiosa de força e ousadias. O público não podia ter sido mais de culto, com a cantora incapaz de esconder surpresa e comoção diante do coro que tomava conta das canções ao 1º acorde, louvor justíssimo para a grande prestação deste Delta, apenas secundada por Chiclete com Banana, no domingo.
O fado vingou-se do esquecimento na edição anterior e veio magestoso pela mão grande de Mariza. A fadista cumpriu, aliás, um dos melhores momentos de lusofonia, ao lado de Tito Paris. Sublime e simbólico, o momento em que, enlaçados, fizeram fado e morna bailar a uma só cintura. Adriana Calcanhotto não trouxe nada de novo, apesar de Marés, sobretudo a quem a viu no S. Luiz e nos Coliseus. A tripla de êxitos Devolva-me, Fico Assim e Vambora, agitou nostalgias fáceis, mas não chegou para acordar. A mulher de vermelho ainda desceu do banco que lhe servia de pedestral, quando as clareiras abertas no público se tornaram mais alarmantes. Mas já nada travava o fluxo para o Palco Montepio onde, por essa altura, Manuela Azevedo e os seus rapazes faziam aquilo que melhor sabem fazer: dançar na corda bamba e incendiar as hostes.
Ao contrário da noite anterior, a aposta para encerrar domingo foi ganha com o fenómeno de popularidade, em terras do Brasil, Chiclete com Banana. Bell Marques confessou ser «a 1ª vez nas Europas», mas anos com o 'bloco na rua', deram-lhe a mestria sábia de intuir num relance o público enchia o recinto:«brasileiros especiais, portugueses maravilhosos!». E estava criada a ponte à irmandade. «Bem-vindos ao mundo mágico dos guerreiros da alegria», anunciou. E ninguém se fez rogado: eles em tronco nu, elas a desembaraçarem-se do preconceito até ficar só o soutien e muito axê, frevo e forró a regar a combustão. «Me ajudem a mostrar a Portugal o que é ser chicleteiro!», pedia a Pernambuco, Fortaleza, Salvador e todos os recantos verdes e amarelos representados no Alto da Ajuda. As conterrâneas, sobretudo elas, imparáveis e incansáveis fizeram-lhe a vontade e levaram de ponta adolescentes bronzeadas, balzaquianas da Costa do Sol e portentosas representantes da kizomba e do kuduro (Irmãos Verdades, Sam the Kid e Boss AC em alta, horas antes) tomadas todas elas do mesmo fogo que destilou ousadias reproduzidas à minúcia pelo video hall. Erva Venenosa de Rita Lee, Um Dia de Domingo, de Tim Maia, um tributo especial «à nossa rainha Ivete» e a banda a sair gloriosa na 1ª incursão por Portugal.
Pese embora um ou outro momento a desvirtuar um conceito consistente, que se escusava (Gentleman e Patrice, nem sequer convenceram), o 2º Delta Tejo deixou claro que possui lote próprio na agenda dos festivais, polarizando lusofonias, atraindo nichos nem sempre aliciáveis por este tipo de eventos e demonstrando uma capacidade invulgar para congregar assimetrias e diversidades num mesmo recinto.
Fonte: Destak