"Sou e morrerei sendo um transgressor"
A sua carreira começou tarde e promete acabar tardíssimo. Aos 67 anos, Ney Matogrosso lança o 31.º registo de estúdio mas continua a privilegiar o palco. Para ouvir e ver hoje no Casino de Espinho, amanhã no Coliseu do Porto, dias 21 e 22 no de Lisboa, dia 24 em Faro e 26 na Figueira da Foz
Como classifica estes Inclassificáveis?
Antes de mais, é pop/rock. Eu surgi numa banda rock [Secos e Molhados, em 1973]. Durante todo este tempo não me limitei a isso, porque antes de ser rock ou qualquer outra coisa sou um artista brasileiro, um intérprete, que por não compor tem a liberdade de usar tudo o que a música brasileira oferece. Mas o pop/rock me dá a possibilidade de ir até aos limites. Os limites sou eu próprio que estabeleço, dependendo do que estou a cantar. E quando estou a cantar música desta não tenho qualquer compromisso com a formalidade. O limite é o meu sentido estético.
E este é, uma vez mais, um espectáculo e um disco com grande apelo estético.
Isso é muito importante para mim.
Onde se inspirou para estes figurinos?
Num programa de televisão sobre as civilizações da América do Sul. Numa determinada altura do ano, o imperador Inca ia ao lago Titicaca, ficava nu com o corpo coberto de ouro em pó e mergulhava para oferecer o ouro de volta aos deuses. Achei um arquétipo muito poderoso da América Latina e foi baseado nisso que nasceu este figurino. A segunda roupa que uso é transparente e tatuada com motivos do Alto Xingu [região reservada de povos índios no sul da Amazónia].
Sente-se um actor?
Sou um actor antes de mais nada. Sempre foi o que busquei na minha vida.
Um transgressor?
Expressar o que se pensa e não seguir os ditames é sempre ser transgressor. Eu sou e morrerei sendo um transgressor. Sinto essa necessidade como ser humano.
Aos 67 anos contin ua a encontrar motivos para transgredir?
Olhe o mundo ao seu redor e me diga se não continua a haver motivos.
Reformulo a pergunta: olhando o mundo, o que é que ainda vale a pena transgredir?
Tudo. Quais são as regras? Está tudo equivocado! A regra do mundo continua a ser a do dinheiro. Não há evolução humana. Há evolução tecnológica, nada mais. Não há evolução no sentido da solidariedade, da união, da fraternidade. Dá para ter ilusões?
Pergunto-lhe eu: dá para ter ilusões?
Não, claro que não. Então, dentro das minhas possibilidades, vou expondo um pensamento que contraria a ordem estabelecida. É um direito um dever que sinto, o de me expressar com liberdade.
De que forma isso está no espectáculo?
O texto é muito claro. Falo em texto porque o espectáculo é muito teatral. Quem prestar atenção vai perceber que aquilo tem um princípio, um meio e um fim, um pensamento expresso no roteiro.
Há uma história contada?
Absolutamente. Mas tem de ser o público a perceber, não eu a explicar. Eu gravei o disco depois do espectáculo montado e o espectáculo não está todo no disco. Mas a espinha dorsal, o que conta a história, está lá.
Se não lhe posso pedir que conte a história, peço que descreva a espinha dorsal...
O Tempo Não Pára [Cazuza], Mal Necessário [Mouro Kwito], Ode Aos Ratos [Chico Buarque], Inclassificáveis [Arnaldo Antunes] e Divino Maravilhoso [Caetano Veloso]. Estas canções sustentam toda a história. No intervalo eu abro o leque a outros assuntos.
É portanto uma história política... Ode aos Ratos podia resumir a mensagem?
Claro. É mesmo... E tiro uma vez mais o meu chapéu ao grande Chico Buarque que é capaz de escrever e cantar um texto como este. Esta gente que está aqui vivendo nas favelas, nas ruas, são seres humanos e não são vistos como tal. São reprimidos constantemente dentro das favelas pela polícia e pelo tráfico. São marginais? Alguns serão. Mas a esmagadora maioria são seres humanos obrigados a viver uma vida horrorosa e sem alternativa.
Está mais desiludido hoje do que estava quando começou, há quarenta anos?
Sim, mais.
É público que votou em Lula da Silva. Desiludiu-se?
Sim. Porque a gente acreditou que com a chegado do PT [Partidos dos Trabalhadores] ao poder o princípio seria invertido. Que os princípios alterariam o sistema. Mas não. Foi o contrário. O PT submeteu-se ao sistema, adoptou os princípios do sistema, tornou-se o sistema. Era um partido que pregava a ética e quando vemos que não tem nenhuma, não há ilusão possível.
O PT perdeu o seu voto?
Para sempre.
Fonte: Diário de Notícias Online